Obrigado Doutor: O Cerco (1981)


Em 1981 eu era um jornalista em início de carreira com 28 anos de idade. Mas meu desejo era escrever ficção para TV. Quando descobri que o grande produtor e diretor Walter Avancini estava recrutando novos autores para uma série da rede Globo, eu caí matando.


Avancini estava trabalhando em uma série de formato bastante tradicional chamada Obrigado Doutor. A série era inspirada num programa da Rádio Nacional do Rio de Janeiro da década de 1950. Francisco Cuoco fazia o papel do Doutor Fernando, o médico da pacata cidade de Andorinhas, no interior de São Paulo. Ele era assistido pela enfermeira Conceição (Cristina Santos) e tinha o apoio da freira Júlia (Nicette Bruno) - o alívio cômico da série.

Normalmente Obrigado Doutor mostrava os casos dramáticos vividos pela população de Andorinhas. Como um bom herói, doutor Fernando ia muito além de suas obrigações de médico e ajudava a quem estivesse necessitado. Mas os índices de audiência foram baixos desde o início. A série parecia tradicional demais para um público que queria novidades na telinha.


Foi aí que Walter Avancini, um dos maiores nomes da história da TV brasileira, foi convidado a intervir. Avancini reuniu uma classe de jovens candidatos a roteiristas. Do grupo faziam parte Carlos Lombardi e Ney Marcondes, que fariam carreira em novelas. Lá estavam também o diretor Flavio Del Carlo, que já fazia parceria comigo em curtas metragem. E Luciano Ramos, que se tornaria um dos dos melhores críticos de cinema e quadrinhos da imprensa brasileira.

Walter Avancini nos pediu sugestões para sacudir Obrigado Doutor. Eu estava com uma revista em quadrinhos do Capitão América na cabeça, e especialmente uma aventura escrita pelo meu grande ídolo Stan Lee. Nessa história em particular, o Capitão se enche da vida de super herói, arruma uma moto e sai pela estrada em busca da "verdadeira América".

Minha sugestão foi para que o doutor Fernando saísse do conforto do seu consultório e caísse na estrada com uma moto. O Avancini sorriu com  a possibilidade de colocar Francisco Cuoco e Nicette Bruno vestida de freira numa moto em busca de aventuras. E formou o trio de autores formado pelo Flávio, pelo Luciano e por mim.

Minha ânsia em ir para primeiro time de autores da Globo falou mais alto e eu meio que atropelei meus colegas de grupo (e me desculpo por isso com o Luciano e com o Flavio, in memoriam). Se era para sacudir, por que não colocar uma banda de rock na trama? E incluir cenas de pura ação com tensão e até uma certa violência?


A história ficou assim: numa cidade vizinha a Andorinhas, uma banda de rock de fora dá um show. Durante o show, o guitarrista da banda, Bob, se envolve com uma garota local, Cynthia. Acontece que ela é namorada de Celsão, o filho do homem mais poderoso da cidade. 

Ao ver a namorada beijar o guitarrista, Celsão inicia uma briga com Bob. A briga fica séria, e Bob leva uma facada na barriga. A turma de Celsão cerca a entrada do clube para dar uma surra na banda visitante. A polícia não interfere porque o delegado é subserviente ao pai de Celsão. Bob sangra.

Conceição, que estava na platéia durante o show, liga para o doutor Fernando e pede que ele atenda o rapaz ferido. Fernando vai, com a irmã Julia, de moto. Chegando lá são hostilizados pela turma de Celsão. E enquanto a situação de Bob piora dentro do clube, lá fora Celsão e sua turma se tornam cada vez ameaçadores, movidos a álcool e desejo de vingança.


O roteiro foi aprovado e o episódio foi produzido, com direção de Luís Antonio Piá. Ney Sant'Anna virou o guitarrista Bob. Mario Cardoso, o playboyzinho Celsão. Nina de Pádua, a disputada Cynthia. A banda gaucha Bixo da Seda foi convocada para atuar como ela mesma.

O episódio - batizado "O Cerco" - foi ao ar em 12 de outubro de 1981. Gravei numa fita VHS. Estava certo que ia assinar um contrato imediato com a Globo e iniciar a sinopse da minha primeira novela. Mas eu estava muito afoito nos meus 28 anos de idade. Esse sonho só seria realizado quatro anos depois. Quanto à série, durou mais 3 episódios e foi cancelada.


A Globo nunca reprisou O Cerco. Nem o canal Viva. A fita VHS quebrou. O Cerco virou uma distante lembrança de um início de carreira. Com o tempo, a memória desse episódio sumiu definitivamente. Até que na semana passada eu levei a fita quebrada ao meus amigos Rogério Naccache e Julio Cesar Romeo em Caraguatatuba. O Rogério e o Julio consertaram a fita e a digitalizaram. E pela primeira vez em 35 anos eu pude rever esse episódio da série. Não me lembrava de muita coisa.



Três décadas depois,  senti orgulho de rever "O Cerco". Ele tem, é claro, as marcas dos anos 1980, a precariedade técnica da época, algumas interpretações mais fracas, e um cena para o final que pode ser considerada meio constrangedora. 

Mas de uma maneira geral o episódio tem uma marca de ousadia do começo ao fim. E tem também uma honestidade que demonstra a entrega de todos os envolvidos na sua realização. O diretor Luís Fernando Piá não teve qualquer receio de ser atrevido em cenas difíceis para os padrões da época.  E aí tem o toque do grande Walter Avancini.

O ataque da gangue de Celsão ao clube impressiona pelo realismo, que lembrou o filme Straw Dogs (1981), de Sam Peckinpah . Em certos momentos os atores parecem assustados de verdade com a chuva de pedras e rojões. Os vilões são muito convincentes, liderados pelos ótimos Mario Cardoso (Celsão) e Tomil (Silverinha). Francisco Cuoco foge da caricatura que construiu de si mesmo com uma interpretação sóbria e densa. A tal cena  - com a banda voltando a tocar no meio do massacre - pode ser constrangedora, mas jamais convencional. 


Mas um dos maiores motivos de orgulho que eu sinto por O Cerco são os quase sete minutos iniciais sem qualquer diálogo, numa narrativa áudio-visual, rara de se ver numa série - nacional ou não.  Walter Avancini bancou essa ousadia. 



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